X - reflexões entre mim e o eu







 o Homem não se define
.a sua essência será sempre o que ele fizer


desde sempre que o homem tem procurado entender o mundo que o envolve e compreender-se a si mesmo ,através da inteligência
.o mundo ,porém ,não é ,apenas ,o que se vê e o que se deseja
.é algo de muito profundo ,traduzido em actos e factos, perecíveis no tempo e que, mais cedo ou mais tarde, nele se apagam e reacendem
.é um processo também de memória ,quando o preço da incompreensão se reveste numa agressiva ,se bem que controlada ,desilusão
.a angústia como dividendo da Utopia…”




nesta noite de Junho e em jeito de iniciação ,gostaria de saudar-vos com meia dúzia de palavras ,aparentemente sem nexo ,mas intencionais e que se articulam ,mais uma vez ,num todo ,como linguagem do meu entendimento inconsciente
cedo ,muito cedo ,apercebi-me que horrorizado pela ideia do pecado ,como todo o moralista ,o homem procurava matar ,em si e nos outros ,o homem natural ,o sonhador
mas ,maneiras de sonhar há muitas ,e ,a mais meritória é aquela em que os nossos anseios constituem uma espécie de vingança
as minhas palavras escritas são e serão a minha forma de vingança .é por isso que ,teimosamente ,dia após dia ,escrevo

(…)

Eu - deixei de fumar .não bebo café .ficou-me ,assim ,uma Cultura sem estímulos envenenados .mas a verdadeira Cultura não é saudável ,é perigosa  ,não sabe guardar as verdadeiras distâncias e cultiva o caos .sim ,porque Cultura é a agricultura do caos
Mim – e quem inventou o caos criou a novidade permanente que luta contra o imobilismo ,o determinismo ,o reumatismo intelectual e todos os ismos .por isso ,deixemo-nos de puritanismos – uma bica .alguém tem lume ,por  favor?
Eu – além disso ,não gosto ,apenas ,de pessoas teóricas .prefiro ,sem quaisquer diferenciações ,os experimentadores ,os que sabem saltar da reflexão para o meio da rua ,os que não se recusam a viver sem revivalismos ,e ,com quem me identifico…
Mim – …quando te vestes de seriedade e de ironia .acaso te esqueces que uma das melhores maneiras que temos de soltar o diabo às canelas dos bem pensantes é falar neles com ironia ,como se não existisse?
Eu – e quantas vezes não tens vontade de soltar o diabo?
Mim – eu diria antes .quantas vezes não o soltámos!?
fizemo-lo sempre com aquela vontade gostosa , muito ao nosso jeito ,de quem começa as coisas e as acaba
Eu – mas haverá ,ainda ,alguém que não saiba que a verdadeira crise é a do pensamento?
Mim – sim ,porque é necessário e urgente criar gente que pense ,como primícia e símbolo do Homem  – a inteligência e a liberdade
Eu – e já reparaste como a evolução das ideias continua a fazer-se ,entre nós ,com uma lentidão super teimosa? e o responsável desta inércia intelectual ,sabes qual é?
Mim – sei .o nosso amigo lugar-comum .o principal instrumento da acidez de espírito chamada má língua .além disso ,a hipocrisia ,a impertinência ,a tolice enfática ,os exacerbismos egoístas ,os crimes contra o bom senso são mais o produto do lugar-comum que da in.Cultura
Eu – sabes que ,neste momento ,também me sinto presa na engrenagem?
Mim – não acredito! então ,e a Utopia ,o nonsense ,o absurdo e o sonhar deixaram de fazer sentido?
Eu – calma .não recomeces .estas nossas reflexões ,como todas as que exprimimos ,pretendem ,tão só ,ser o  fim dos nossos equívocos .antes ,porém ,deixa-me lembrar-te o que ,em tempos ,alguém nos ensinou – o Homem não se define .a sua essência será sempre o que ele fizer
Mim – então ,qual é a dúvida? se a nossa essência é ,apenas e sempre ,o que nós fizermos ,solta o diabo ,Maria Gabriela ,solta o diabo!
Eu – pronto .seja feita a tua vontade

música ,maestrina!




Junho ,2017
Gabriela Rocha Martins






IX - qual o papel de cada um de nós na sociedade?







De facto, há qualquer coisa podre sobre a maquilhagem, qualquer coisa fétida sob a organização social mais brilhante, qualquer fenda onde se insinua e desenvolve a semente que fará com que tudo desabe.
Eterna meditação sobre a queda dos impérios, o fim dos homens e sobre a poeira da História”.

- Marguerite Yourcenar.


tendo presente a citação de Yourcenar ,que ,particularmente ,admiro ,e ,face aos diversíssimos aspectos contraditórios da vida portuguesa ,ouso questionar - afinal, qual o papel de cada um de nós na sociedade?
nenhum – respondem os descrentes!
como não aceito tal premissa ,congemino em voz alta…
cabe ( dizem-me! ) aos Politécnicos ,excelente montagem do POLÍTICO/TÉCNICO ,agir ,arbitrariamente ,em nome do colectivo .é o pressuposto da representatividade .e o terrível é que há sempre uma desculpa – a de que a sua actuação é feita em nome de princípios ,regras e valores comunitários
.esquecem-se ,porém ,que a Cidadania vive sempre noutro lugar ,no quotidiano de todos nós ,longe dos espectáculos e das exibições
.alimentar a ideia de que todos os fenómenos políticos têm de subordinar-se ao espectacular e às leis do mercado ,traduz ,inequivocamente ,o empobrecimento da comunidade em que vivemos e impede o nascimento de ideias e a concretização de acções que permanecem
.e mais…
face a uma geração sedenta de eternidade e de poder ,essa mesma comunidade reage ,tornando-se mais frívola ,e ,isto porque há cegos demasiado habituados a sê-lo .são as relíquias de uma época ,a quem cabe a ingrata missão de prestar contas aos vindouros
.há ,porém ,quem tenha afirmado ,sem qualquer protagonismo político ,ou pretensão a tal ,ser tempo de dizer – BASTA ,e fê-lo ,reflectindo ,d forma construtiva ,sobre o passado presente ,a fim de projectar o futuro ,dignificando o presente como parte integrante de algo que se desenrola do interior para o exterior de cada um de nós .sem exibicionismos e ,paulatinamente ,assumida nas palavras de António Sérgio:
Meu Caro Amigo: continuemos a palestrar como dois bons amigos – sem nenhum finca-pé, sem paixão alguma, sem ceder ao furor de denunciar culpados. Criadoramente. Generosamente. Construtivamente.
Não desviemos os olhos do que realmente importa: o que chamo as “pedras vivas” do “país real”; e busquemos os remédios da actuação directa, cujo processo se nos apresente de maneira simples, clara, facilmente compreensível ao comum dos homens.
Pela qualidade dos frutos se julgará da árvore; assim se diz no Evangelho.
Então,
porque frutos julgaremos a tua governação, a tua presumível construção política?




Maio ,2017
Gabriela Rocha Martins






VIII - algumas reflexões sobre Cidadania







“Regra absoluta de uma alma livre: nunca aclamar um senhor governante, seja este liberal ou não seja; por maioria de razão, nunca ser tímido dele, não sentir por ele “instintivo respeito”, ou “temor aflito” ante o seu contacto: mas conservar uma atitude ( desprendida ) crítica, ainda que concordemos com a sua obra, ainda que o ajudemos na sua acção.
As almas libertas – as bem nascidas – só se comovem interiormente se inclinam ante as puras grandezas espirituais, quando desacompanhadas de qualquer poder.
Num Marco Aurélio, veneramos a nobreza do filósofo estóico, não veneramos o imperador de Roma”.


- António Sérgio




em Portugal ,porém ,face à passividade geral ,os homens do poder ,porque eleitos ,ditam as suas “leis” e aplicam-nas em nome da representatividade
.são venerados como eleitos para – e como se estranharia se não cumprissem essa função – condicionar o comportamento da sociedade .e esta ,por “instintivo respeito” ou “temor aflito” ,inevitavelmente ,estereotipada e amorfa ,vai perdendo ,cada vez mais ,influência
.é ,então, que por artes de magia ,os eleitos promovem ou patrocinam espectáculos circenses alienatórios das massas ( já de si alienadas ) que ,impulsivamente ,aderem à festa
.há ,no entanto ,os resistentes
.aqueles que embora em minorias – culturais ,sociais ,políticas e intelectuais – buscam o essencial ,marginalizados do complô compulsivo do poder .fazem jus ao seu imaginário ,cientes de que ,em momentos de crise ,são as minorias que ,tendencialmente ,invertem os jogos do poder enquanto tal
.já é tempo de a Cultura ser considerada na sua dimensão fundamental – não como um somatório de experiências “velhas e inúteis” ,mas como um modo de estar e de intervir ,como um ponto de partida ,e ,sobretudo ,como um impulso para uma procura inventiva de novas possibilidades de progresso e desenvolvimento humanos
.todavia, o trabalho que permite vencer o isolamento ,a apatia ,o individualismo ,o passivismo e fomentar uma atitude criativa e crítica ,não se concilia com o desejo que anima alguns eleitos ,de obter resultados rápidos e imediatos
.passivamente ,continuamos a não interiorizar os nossos valores essenciais ,a não exigir a preservação dos nossos símbolos ,suportes presentes da nossa história colectiva ,logo ,da nossa identidade como povo
.face ao inegável ,há ,contudo ,quem resiste ,encontrando nas palavras de Miguel Torga ,a justificada fuga ao efémero – “Bem quero, mas não consigo alhear-me da comédia democrática que substituiu a tragédia autocrática no palco do país.
Só nós!
Dá vontade de chorar ver tanta irreflexão. Não aprendemos nenhuma lição política, por mais eloquente que seja.
(…)
Quando temos oportunidade de ser verdadeiramente livres, escravizamo-nos às nossas obsessões. Ninguém aqui entende outra voz que não seja a dos seus humores. É humoralmente que governamos, que legislamos, que elegemos. E somos uma comunidade de solidões impulsivas a todos os níveis da cidadania.
Com oitocentos anos de história, parecemos crianças sociais. Jogamos às escondidas nos corredores da vida.”
.é tempo de pô-lo em prática ,assim o exige o nosso ser/estar social.




Março ,2017
Gabriela Rocha Martins






VII - uma Utopia possível – 2ª Parte







“a Política faz-se pela positiva ,não por contradição”



foi com esta frase que terminei a 1ª parte da minha anterior crónica .é com ela que inicio a segunda ,porque ,em meu entender ,a política impõe uma séria reflexão introspectiva e actual sobre a comunidade em que estamos inseridos .reflexão que ,como um dia escrevi ,deve ser acompanhada por um profundo exame de consciência ,sem concessões para todos aqueles que ,quais Velhos do Restelo ,e ,com várias metástases ,tentam deturpar a verdade dos factos ,lançando o anátema sobre essa mesma comunidade
.essa reflexão é tanto mais necessária quanto a nossa comunidade continua adiada ,marginalizada e minimizada
.é legítimo ,em democracia ,que as Pessoas tenham ou façam as suas opções políticas .como é legítimo o contrário
.todavia ,qualquer posição que seja tomada ,deverá sê-lo ,em consciência ,e não como factor de poder ou contra-poder .isto é: nos verdadeiros democratas ,as opções fundamentam.se em princípios interiorizados ,em que o “servir a causa pública” é ,sempre ,um acto político ,quer o queiramos ou não .não há isenção nos seres activos ,porque agir pressupõe “tomar posição em relação a” ,e , esta é ,igualmente ,uma forma de poder .sendo este um factor determinante do estar em sociedade ,não pode ,nem deve sustentar-se em questões de índole pessoal ,mesmo quando camufladas no “bem servir a comunidade” ,porque o “ser em comunidade” exige o respeito pelo outro ,ou seja ,o respeito à diferença .outrossim ,este respeito pressupõe o estar sempre ausente ,no não agente ,o estar sempre presente ,no agente
.há que afastar os fantasmas ,consequências inevitáveis do ser em comunidade ,porque não são as nossas empatias que galvanizam as sociedades ,saturadas até à medula ,nas certezas dos HOMENS SÓS
.e neste capítulo ,a Comunicação Social – escrita e falada – tem um papel preponderante
.não para os que vivem os acontecimentos ou neles se envolvem ,porque ,facilmente ,detectam a inveracidade dos factos ,a subjectividade das crónicas ,a informação tendenciosa
.todos nós temos consciência da falibilidade informativa
.mas ,se tomar posições é natural ,o mesmo não acontece quando não assumidas com frontalidade e verticalidade ,mas antes ,camufladas pelos imperativos de momento ,à volta de interesses pessoais presentes ,passados ou futuros
.urge assumir ,sem diletantismos ,uma perspectiva racional ,porque os tempos das “paixões” são fugazes como a própria paixão
.urge assumir uma perspectiva englobante ,essencialmente construtiva ,em prol do Humanismo ,da Solidariedade ,da Justiça e da Cultura ,porque só em diálogo ,transparência e tolerância ,é possível renovar as sociedades
.somos Mulheres e Homens ,com os defeitos e as qualidades do género ,mas também com a fragilidade humana de nos sabermos emocionar .todavia ,confundir emoção com prepotência ,é não ser capaz ou não querer ultrapassar a própria incapacidade
.urge assumir as diferenças .é o princípio da não contradição
.assim ,deambulando pensamentos ou cogitando sobre o nosso passado recente ,chego ,invariavelmente ,à mesma conclusão – as nossas esperanças como poetas ou não –poetas ,sonhadores ou “homens práticos” ,ascéticos ,agentes ou ausentes ,não ganharão consistência ,primo ,enquanto não racionalizadas e interiorizadas ,secundo ,quando não colocadas ,sem dissimulados protagonismos ,ao serviço do bem comum
.só assim nos afirmamos como seres individuais e sociais
.em suma ,numa comunidade falha de verdadeiros substractos humanistas ,há que acreditar numa Utopia possível ,porque mudar é renovar e renovar é construir o futuro.



Fevereiro ,2017
Gabriela Rocha Martins







VI - uma Utopia possível. 1ª parte







deambulando pensamentos ou ,simplesmente ,cogitando ,chego sempre à mesma conclusão – a Humanidade divide.se em poetas e não.poetas
.no primeiro grupo há aqueles que nunca escreveram um verso .no segundo ,há não só quem os tenha escrito ,como também publicado
.ser poeta ,porém ,não se circunscreve ao escrevinhador/escritor ,citando Sartre ,mas antes à enorme capacidade de reinventar a utopia ,em tornar viável o inexequível .é a ascese
.a afirmação do indivíduo como ser uno ,inserido ,todavia ,no social a que pertence ,por nascimento ou adopção
.“Ninguém morre sozinho” ,escreveu ,um dia ,o Professor Daniel Sampaio .parafraseando.o ,direi que ,em cidadania ,ninguém “vive” sozinho ,porque o UM não é mais do que a minúscula parte do TODO ,e ,o todo somos nós
,poetas ,sonhadores ,“homens práticos” ,ascéticos ,agentes activos e passivos
.em suma ,a Comunidade possível
.mas as nossas esperanças como seres não ganharão consistência se não forem alicerçadas na busca da simbiose entre o ser pensante e o ser agente ,balizadas nos valores civilizacionais mais profundos e na modernidade mais actualizada ,hoje ,falhos de verdadeiros substractos sociais ,culturais e políticos
.políticos ,porque a carência dos mesmos fez com que todos nós tivéssemos mergulhado ,pouco a pouco ,nos vícios atávicos do passivismo ,por um lado ,ou na intolerância e na pequenez cultural ,geradoras do diletantismo que subestima os cidadãos que não se reconhecem na partidocracia ,por outro
.a memória é curta ,diz o velho aforismo popular
.e ,como a memória dos homens tem tendência a repetir.se ,exige a moderna consciência que saibamos aprender ,todos ,mesmo os de fraca memória ,de modo a não permitir ,no presente e no futuro ,que o autoritarismo ( camuflado ou não ) domine ,perversamente ,o nosso dia a dia ,enfraquecendo a capacidade criadora de todos nós
.é fundamental que a cooperação e o diálogo prevaleçam ,dignificando o HOMEM ,ser uno e social ,não o marginalizando ,porque fazê.lo é uma visão maniqueísta que acentua as já perturbadoras assimetrias económicas ,culturais e educacionais
.são as Pessoas ,os únicos protagonistas das reformas e reestruturações ,e ,deverão ser elas ,numa perspectiva humanista ,os principais agentes das mesmas
.em cidadania não há filhos adoptados
.acentuar a diferença entre “nascidos” e adoptados é um conceito xenófobo que ,mais não faz ,do que preceituar a exclusão ,por ironia ,receio ou despeito
.a democracia exige que o Homem se torne no centro das relações sociais crescentes em número ,amplidão e qualificação .oferecer à liberdade humana novas possibilidades ,manifesta o devir e o dever/ser dessa mesma liberdade ,o que equivale a dizer que só resulta ,através e com o homem ,ser uno e plural
.a política faz-se pela positiva ,não por contradição .muito menos com medo ,mentiras ou falsas verdades
.tentar minimizar o Homem ,ou coarctar-lhe a criatividade ,são conceitos mesquinhos que só se equiparam à mesquinhez de quem assim age



Janeiro ,2017
Gabriela Rocha Martins.






V- ser ou não ser ,eis a questão!







aproveitei o meu período de férias ,entre outras coisas ,para colocar em dia as minhas leituras .li novos livros ,mas ,sobretudo ,reli alguns ,cuja presença me é necessária quase como o comer
.é o caso de Hamlet
.porquê ,Hamlet? quem é ,de facto ,Hamlet?
”Quem tem a sorte de nascer personagem viva, pode troçar da própria morte, porque não morre nunca! Pode morrer o homem, o escritor, o instrumento de criação, mas a sua criatura, essa nunca morre! E para viver eternamente nem sequer precisa de ter dotes invulgares ou de obter prodígios. Quem era Sancho Pança? Quem era D. Quixote? E, no entanto, estão vivos para sempre porque tiveram a sorte de encontrar uma fantasia que os soube criar, insuflar-lhes vida para toda a eternidade!” – escreveu Luís Francisco Rebello
.é assim que o personagem de Hamlet sobrevive ao seu próprio criador ,que ao certo não sabemos se era William Shakespeare ,filho de um magistrado municipal ,cujo baptismo foi registado na igreja paroquial de Stratford ,com a data de 26 de Abril de 1564 ,ou se outro que escreveu ,sob o mesmo nome ,uma trintena de comédias ,tragédias e tragicomédias que ,para uns ,”são um dos mais altos vértices do génio humano ,e ,para outros ,o produto monstruoso de um bárbaro”
.quem quer que tenha sido o criador de Hamlet ,do que não restam dúvidas é que o príncipe transpôs ,sem envelhecer ,quinhentos séculos
.mas ,Hamlet não é o único a ser eterno
.com ele ,são.no Antígona e Electra; Inês Pereira ,D. Quixote e D. Juan; Hedda Gabler ,o tio Vânia ,Bernarda Alba ,a Mãe Coragem e quantas e quantos ,cujos nomes se nos tornaram familiares ,assim como os rostos ,os actos ,os gestos ,e ,as palavras que dizem…
com Hamlet ,porém ,as coisas não se passam ,exactamente ,da mesma maneira .conhecemo.lo tal como os outros ,julgamos conhecê.lo ,mas ,no entanto ,cada vez que o encontramos ,ele surpreende.nos ,porque nos surge sempre diferente ,ainda que as suas palavras e os seus gestos sejam os mesmos .porque Hamlet não é uma máscara aplicada num rosto ,mas um rosto que a cada instante muda de máscara .é um espelho onde um rosto se multiplica em infinitas imagens ,onde se reflectem as suas diferentes máscaras .e aí ,quer queiramos quer não ,Hamlet é o espelho de cada um de nós…
todos nos julgamos apenas um ,quando ,afinal ,somos tantos quantas as nossas máscaras .e Hamlet é a ilustração exemplar deste drama .drama porque o próprio espírito do príncipe não se vê uno ,mas dividido e contraditório .dividido entre o pensamento e a acção .entre a dúvida e a certeza .entre o amor e o ódio .entre o bem e o mal .entre a razão e a loucura .entre o ser e o não ser – e ,no entanto ,sempre ele
.da sua personalidade se tem dito que é ambígua ,incoerente ,indefinida ,enigmática .com efeito ,ao longo das várias cenas da tragédia ,Hamlet mostra.se crédulo e céptico ,generoso e cruel ,audaz e tímido ,calmo e impetuoso ,cortesão e grosseiro ,ingénuo e cínico ,justiceiro e vingativo ,voluntarioso e “adormecido”
.e é ,por tudo isto ,que Hamlet se nos apresenta ,inesgotavelmente ,rico e humano
.na 2ª Cena do 2º Acto ,Shakespeare precisa que Hamlet deverá entrar em cena a ler .então ,que livro lerá o príncipe? é difícil responder ,porque qualquer obra serve e variará conforme o sabor dos tempos
.assim ,teremos um príncipe da Renascença ou um herói romântico ,um racionalista ou um sonhador ,um místico ou um revolucionário ,um jovem torturado pelo complexo de Édipo ,um intelectual neurótico ,um antigo estudante que leu António Nobre sentado a uma mesa da Brasileira ,ou que esteve nas barricadas de Maio de 68 .todos estes Hamlets cabem no Hamlet de Shakespeare ,e ,por isso podemos dizer que ele é todo o mundo e ninguém
.quem é ,de facto ,este Hamlet ,ou esta tragédia que há cinco séculos se representa em todos os teatros do mundo e que constitui ,para um actor ,a mais exigente e conclusiva prova de exame? um drama filosófico ,um drama político ,um drama existencial ,um drama metafísico sobre a condição humana ,um drama absurdo ,um psicodrama? – basta lembrar a cena da representação destinada a servir de armadilha ao rei e os conselhos dados por Hamlet aos actores que para esse fim contratou – e ,com certeza ,não ficam esgotadas todas as hipóteses
.Hamlet ,quando a máquina infernal do destino se põe em movimento e a tragédia se aproxima do fim ,duvida de si próprio ,vê-se como os outros o vêem ,deixa de ser ele para ser ,aos seus olhos ,ninguém .se o consideram louco é porque é louco ,mesmo que finja não sê-lo .a loucura pode ser uma das muitas máscaras aplicadas no seu rosto ,mas para os outros ,a partir de então ,ele é ,verdadeiramente, louco
.não é por mero acaso que Shakespeare o põe a falar de si próprio na 3ª pessoa ,como se ele não fosse ele ,mas o outro que os outros vêem nele
.morre levando consigo o segredo da sua enigmática personalidade
.loucura verdadeira ou loucura simulada?
eis a questão: ser ou não ser!
”Eu sou para os outros aquilo que me julgam ser, e para mim não sou ninguém. O resto é silêncio” – são as derradeiras palavras do príncipe no momento de agonia
.sábias palavras estas .palavras que ,talvez ,só um louco pudesse pronunciar…




Dezembro ,2016
Gabriela Rocha Martins







IV - carta a um Amigo







caríssimo José!


certo é que “vida nova num mesmo olhar” é mais um lugar comum e como tal ,merece-me pouca importância ou mesmo nenhuma ,atendendo ao facto de não gostar de lugares comuns .mas ,não são os meus gostos pessoais que pautarão esta carta ,mas ,antes ,algumas reflexões que tenho vindo a fazer ao longo dos tempos ,e ,muito particularmente ,dos últimos anos
.observo ,no que aos partidos políticos respeita ,um afastamento cada vez maior das pessoas perante os mesmos .várias são as razões que podem explicá-lo ,desde um desinteresse cada vez maior pela “res publica” ,a consciência da inevitabililidade – tão presente no nosso pensar colectivo - ,o deixar correr ,o desacreditar cada vez mais nos nossos políticos ,o desencanto ,a necessidade de chegar cada vez mais fundo ,como se ,hoje ,fosse possível chegar ainda mais fundo ,para então sim ,tentar novas políticas e novos rumos .a partir do momento em que ,cada um de nós interiorizou o estar em sociedade e o viver em democracia participativa ,diluiu-se o papel do Eleito e do Eleitor – prática contraditória – que pouco agrada aos diversos partidos políticos
.a militância ,porém ,não se faz ( ou não deve ser feita ) com amargura ,mesmo quando os agentes têm razão ,porque a mesma acarreta ,para quem tem a consciência tranquila ,afastamento em vez de aproximação
.além disso ,caríssimo amigo ,parece-me ,face à minha experiência e do muito que alguns têm dado em prol do social ,sem nunca terem pedido nada em troca - os verdadeiros idealistas - que na presença da corrupção ,da incompetência ,do vazio de ideias e ideais ,dos oportunismos e dos pessoalismos exacerbados que vão presenciando ,diariamente ,se distanciam ,quais observadores dum mundo em decadência .que é feito das Mulheres e Homens deste País que ,sem ambições de poder ,ao mesmo têm dedicado ,através do seu estar social ,a sua experiência e saber? conscientes da presente involução da democracia ,afastam-se ,porque as suas ambições ,perante o desalento ,passam a ser diferentes .e tornam-se expectantes
.assim sendo ,julgo ,face às minhas reflexões ,que outros , os mais novos ,em termos de idade e envolvência política ,deverão ser os novos protagonistas .quero vê-los dando provas, num País rejuvenescido ,em domínios que decidem e decidirão o nosso futuro  ,mormente ,no domínio da Saúde – onde estão os cérebros? – na área da Segurança Social – não há crânios para tais abordagens? – na Educação e Justiça – então, meus amigos?
a Cultura ,essa filha pródiga ,como nunca deu ,nem dará votos ,sempre foi vista ,lamentavelmente ,como a parente pobre ,na qual nunca valeu a pena investir ,como se a mesma ,a par da Educação ,não fosse o barómetro da sociedade
.mas ,prosseguir com este desabafo ,meu amigo ,levar-nos-ia muito longe ,e o meu amigo ,como eu ,sabe-lo…….
assim ,prefiro observar .e ,agora mais do que nunca quero fazê-lo ,porque ,segundo o que me rodeia ,vejo ,ouço dizer e leio ,pior do que estivemos nos últimos cinco anos que precederam o actual ,é impossível
.fico-me pela observação atenta e aguardo ,sem ironia ,o momento próprio para intervir
.e ,o meu Amigo ,qual o seu papel neste desenrolar da História sem história?
.aguardo a sua resposta
,com a amizade ,a cumplicidade e a sinceridade de sempre




Gabriela Rocha Martins
,Novembro de 2016







III - novas reflexões sobre DEMOCRACIA E LIBERDADE







desde sempre que o homem tem procurado entender o mundo que o envolve e compreender-se a si mesmo ,através da inteligência
.o mundo ,porém ,não é ,apenas ,o que se vê e o que se deseja
.é algo de muito profundo ,traduzido em actos e factos, perecíveis no tempo e que, mais cedo ou mais tarde, nele se apagam e reacendem
.é um processo também de memória ,quando o preço da incompreensão se reveste numa agressiva ,se bem que controlada ,desilusão
.a angústia como dividendo da Utopia – escrevi ,há algum tempo atrás
.regresso ao mesmo tema ,dada a sua oportunidade ,e ,sobretudo ,a minha estupefacção face ao jogo das máscaras que alguns representam ( mais ou menos bem ,muito embora julguem o contrário ) no tabuleiro da vida
.hoje ,em que o destino de cada um de nós se encontra ,cada vez mais ,comprometido pelas opções políticas ,o estar em sociedade só se justifica através da adesão a essa mesma sociedade .mas ,se esta adesão não tiver sido subordinada ,previamente ,a imperativos fundamentais que ,para cada um ,encerram uma série de interrogações ,quer no plano ético das representações ,quer no plano material das necessidades ,o estar em sociedade ,repito , não tem qualquer sentido…
e quais são os factores que condicionam esses imperativos? como os interpretam os homens? quais as suas mutações históricas?  - são ,apenas ,algumas das questões que ,na contemporaneidade ,reflectem a noção de democracia ,o que não acontecia outrora
.Rousseau ,por exemplo ,só conhecia a perfeita democracia entre um povo de deuses
.há ,no entanto ,que renunciar a esta perfeição ideal ,já que ,na viva experiência hodierna , “ela perdeu a serenidade de traços com que a enobreciam os filósofos do séc. XVIII, quando não era, senão, uma belíssima estátua num templo deserto. Se, por vezes, a semelhança nos choca, não é apenas a nós que nos devemos incriminar?”
democracia pressupõe liberdade e é ,antes de mais ,um sistema que inclui a liberdade na conexão política .pressupõe ,ainda ,autoridade ,mas estruturada e fundamentada na adesão do social ,mantendo.se compatível com a liberdade do mesmo
.a Declaração dos Direitos de 1789/91 dispõe que “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos” ,o que demonstra a transcendência da liberdade e a obrigação das instituições políticas a ela se submeterem
.não basta ,porém ,associar o princípio democrático à liberdade humana para tomar consciência do significado presente da democracia

.liberdade equivale a autonomia que se traduz na ausência de coacção e no sentimento de independência ,física e intelectual
.nasce ,deste modo ,uma nova concepção de liberdade e democracia a que poderemos chamar de participação ( liberdade participativa/democracia participada ) e que consiste em associar o indivíduo ,como ser social ,ao exercício do poder ,defendendo-o das arbitrariedades e do abuso e/ou prepotência desse mesmo poder
.mas ,liberdade e democracia pressupõem ,também ,e ,antes do mais ,responsabilidade
.todavia , “que importa que o homem seja livre de pensar se a expressão da sua opinião o expõe ao ostracismo e à perseguição? Que seja livre de discutir as condições do seu trabalho se a sua situação económica o obriga a curvar-se à lei do empregador? Que seja aspirante ao desenvolvimento da sua personalidade cultural se esta lhe falta como mínimo vital? – escreveu Georges Bordeau
.hoje ,tudo se passa numa subordinação ,passiva e irreflectida ,à vontade política que ,por seu lado ,se vê confrontada com um processo irreversível de dupla “morte” – de perversão de memórias e de ideais
.destarte ,torna-se urgente recriar a sociedade livre e democrática que alvitramos e defrontar o AMANHÃ ,sem medo ,demagogias e falsas esperanças ,mas com a consciência de que é ,hoje ,no presente e em cada momento da nossa vida ,que vale a pena fruir a herança cultural de que somos herdeiros.




Gabriela Rocha Martins
,Outubro de 2016







II - a Cultura como poder ou como instrumento de relações sociais







A cultura é um instrumento de relações sociais e a forma pela qual os homens actuam em sociedade” - Célio Turino*



a Cultura ,quer queiramos ,quer não ,está presente em todas as acções sociais .a resignação ou inconformismo com que o cidadão encara a sua realidade é, sobretudo, uma conduta cultural .o próprio facto de o indivíduo se aperceber ,enquanto cidadão ,é ,de per si ,fruto de condicionantes culturais e históricas .uma acção governativa que se pretenda progressista ou transformadora ,deverá ter a Cultura como prioridade.
mas a Cultura não pode ser confundida com eventos isolados, que se bastem em si mesmos .muito menos pode ser reduzida a mero entretenimento ou restrita às Belas Artes ou à “alta cultura”, erudita e hermética .a Cultura é isto ,mas não só  .é ,também ,formada pelas referências históricas ,pelos costumes ,pelas condutas ,por desejos e reflexões .evidentemente ,o evento artístico ,como concretização de um processo ,tem um papel fundamental e ,muitas vezes ,é nesses acontecimentos que as pessoas tomam contacto ,pela primeira vez ,com determinadas obras de arte ,e ,são tocadas por elas .o entretenimento ,também ele ,traz uma componente lúdica importantíssima para o Fazer Artístico e seria um profundo elitismo masoquista negar este aspecto agradável da Arte .mas, antes de tudo ,Cultura é “o cultivo da mente” ,ou ,nas palavras de Bertolt Brecht, “(...) é pensar ,é descobrir“.
democratizar a Cultura é democratizar o acesso aos bens culturais universais, permitindo às pessoas adquirirem uma autoconsciência de participação ,e ,ampliar o raio de ação das obras culturais e não ,simplesmente ,adaptá-las ,moldá-las ou enfraquecê-las .permite ao ser humano apropriar-se de instrumentos capazes de romper a falsa consciência alienada e particularista que o impede de desenvolver uma postura crítica diante do mundo em que vive .“deve-se elevar a cultura do povo!” ,defendia e ,muito bem ,Maiakóvski.
a distinção entre Cultura Erudita e de Massas ,e ,destas últimas ,da Cultura Popular ,é uma maneira de hierarquizar as diferenças e assegurar a sobrevivência de um regime social .esta distinção apresenta a elite como detentora de um saber e bom gosto que a legitima ao pleno exercício do poder .às massas – como se existisse esta categoria amorfa e compacta – é oferecida uma cultura pasteurizada, feita para atender às necessidades e aos gostos medianos de um público que não deve questionar o que consome .manter esta distinção significa manter um estatuto de domínio .romper com esta realidade ,difundindo uma cultura que seja instrumento de crítica e conhecimento ,é ,em nosso entender ,o caminho certo para a ampliação da cidadania .vista deste modo, a Cultura deixa de ser um bem secundário em países ,regiões ou comunidades carenciados e passa a ser um bem social ,tal como a Saúde e a Educação .por todas estas razões ,uma gestão pública de Cultura deve ser entendida como prioritária e como alavanca de transformações

Gestão cultural
assim sendo ,há que recordar que estes conceitos que envolvem a Cidadania Cultural estão alicerçados no património cultural ,na formação ,na informação e na criação .não se realizam instantaneamente e têm um caminho longo a percorrer .sofrem recuos ,dependem de reavaliações ,e ,geralmente ,são incompreendidos no momento da sua aplicação .num processo de mudanças sociais ,as mentalidades acabam por mudar ,mas sem princípios condutores de mudança nas mentalidades ,não há transformação possível
gerir é – antes de mais – definir políticas .e definir uma política cultural implica ,em primeiro lugar ,um posicionamento ideológico, não podendo ser confundida com um processo neutro de gestão ,porque as decisões nunca são neutras ,assim como a burocracia .cabe lembrar que uma gestão profissional ,e competente ,não é sinónimo de tecnocracia ,mas sim de condutas públicas coerentes ,em que conceitos e políticas são apresentados à sociedade de forma clara ,permitindo o debate e transformando esse debate em realizações e conquistas da cidadania .por isso a criação de Conselhos Culturais locais são essenciais ,no que às Autarquias concerne ,cabendo-lhes a mediação entre o Poder Político e a Sociedade .uma postura democrática de gestão deixa abertas possibilidades para experiências alternativas e ,deste modo ,permite continuidade no agir  ,e não rompimentos a cada nova equipa governativa ,como se a esta coubesse o “inventar a pólvora” .antes fomenta aquilo que é positivo e o ir em frente ,rumo a uma efectiva e consistente transformação .mais que executar ,cabe nobilitar as potencialidades da sociedade ,abrindo espaço a outras Instituições e agentes que não estejam na esfera pública .o Poder político ,seja ele nacional ,regional ou local ,tem de estar ao serviço da Sociedade e nunca o contrário .assumir uma postura mais humilde e menos impositiva quanto à proposição e execução de programas faz a administração pública crescer e coloca-a no importante papel de articuladora de recursos materiais e humanos .romper com a ideia do Poder político omnipresente e autoritário é perceber na Sociedade – e em todos os cidadãos – a principal fonte de produção cultural

Cultura como filosofia de gestão governativa
em princípio ,Cultura pressupõe a gestão de todas as acções sociais ,e ,consequentemente ,de todos os programas que a tenham como principal objectivo  ,porque ,antes de mais ,Cultura pressupõe comportamentos .manifesta-se nas mínimas relações do quotidiano e obriga a uma determinada postura frente ao mundo e aos Outros .por exemplo ,a organização das filas num supermercado ,é cultura .a chamada de atenção ao desrespeito e às humilhações ,é cultura .a resistência ou o modo de encarar as adversidades ,é cultura .as lutas ,individuais ou coletivas ,são cultura ,e ,é através da mesma que superaremos as nossas realizações e atingiremos as necessárias reformas
o desafio à Sociedade deve vir através da reflexão crítica dos seus próprios anseios ,redefinindo valores e comportamentos .definindo projectos sociais  .é através da cultura que cada sociedade se afirma – de forma consciente ou não – como passiva, reivindicativa ou participativa .e por mais repetitiva que possa parecer ,é com a cultura ,que uma Comunidade se supera ,quando solidária ,no direito à apropriação das suas memórias ,e ,consequentemente ,toma conhecimento da importância do seu papel transformador
destarte ,cabe desenvolver programas a fim de desenvolver o chamado turismo social .realizar eventos de lazer, cultura e desporto que promovam inter-acções entre os cidadãos .cabe lembrar que a violência urbana ,como todos sabemos ,tem inúmeras matrizes ,sendo ,no entanto ,algumas delas  a ausência do lazer e a falta de perspectivas para “passar o tempo” .a necessidade de cultivar a mente .geralmente ,os  espaços de lazer são pensados para os homens, do mesmo modo como os cafés ,os bares e as mesas de bilhar .às crianças ,às mulheres e aos idosos sobra a televisão e as ruas, quando muito .aos jovens nem isso .a estes resta a falta de perspectivas
Cultura como filosofia de gestão é rendível ,social e amplia os horizontes .por isso mesmo ,devemos estar abertos a importar e exportar diferentes e alternativas experiências culturais .este é o motor da mudança -  o desenvolvimento através do intercâmbio e da troca .a cultura integra acções ,dá sentido às realizações e às reformas .é o fio condutor que une o direito à saúde ,ao transporte ,à escola ,ao trabalho e à cidadania .com ela ,e ,só com ela ,seremos capazes de conduzir as nossas sociedades à igualdade democrática ,recolocando os cidadãos no caminho da emancipação humana.
em resumo: um programa de acção governativa pautado no princípio da cidadania cultural administra a cultura de forma integrada ,sistémica .reconhece ao património histórico e cultural a base da sua acção ,preservando e dinamizando os bens que constituem referências fundamentais para a afirmação e construção de identidades .forma consciências .oferece alternativas e amplia o repertório cultural .informa ,democratiza o conhecimento ,e ,sobretudo ,ouve e respeita as diferenças .convida as pessoas a reflectirem sobre sua realidade e sobre aquilo que desejam .cria ,arquitecta e transforma.


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* historiador




Gabriela Rocha Martins
,Setembro de 2016






I - nunca viajei para escrever







 [ viajo sem um segundo sentido
viajo para conhecer(-me) ]


alguns dias atrás ,mais concretamente ,no princípio do presente mês ,tive a oportunidade de passar algumas tardes no Sítio da Pateira ,freguesia de São Marcos da Serra ,concelho de Silves

( um sorriso cúmplice na vertente do Verbo .o simulacro de um sorriso ou a génese de uma conversa .a definição e a metáfora .SOLITÁRIO ,porque “ser em solidão é ser o máximo no Ser” )

durante longas tardes – que a mim me pareciam cada vez mais curtas – ,conversámos ou ouvi ,deliciada ,a imensa sabedoria das nossas gentes serranas .com elas aprendo que ,a percepção estética ,o processo criativo ,não está no olhar mas sim no ver .a essência .a busca intimista e indisível .o meu/nosso imaginário poético .ensinam-me a entender o canto dos pássaros e o murmúrio da terra-mãe .o silêncio carregado de mil significados das nossas serras .o gargalhar ,traquino e gotejado ,dos riachos e das regueiras das hortas vizinhas .o mourejar dos homens .a natureza agreste

as palavras voltam a brincar sobre a minha mesa quadrada .influências e (con)fluências múltiplas .há rituais que me acompanham desde o grande parto
“AGRESTE?
Sim ,agreste .não será deste modo que todo o essencial se assume ou é sentido? Que mais agreste pode haver do amar ,desejar ,orar ,nascer e morrer?
De acordo com as mais recentes teorias cosmogónicas ,a origem de tudo – o grande Big-Bang – foi uma tremenda e humanamente impensável eclosão de energia e matéria
Que evento mais perfeitamente poético pode ter existido? Foi o grande parto
Sim ,o grande parto .O Escrever .E que dor global não deve ter sido?
Que global e agreste início!”*

capitulo .a evidência .rendo-me
são gerações e gerações de mulheres e homens ,lavradores ,agricultores ,camponeses que ,durante essas horas de doce monólogo/diálogo ,povoam o meu imaginário
é-me tão fácil sonhar ,embalada na calidez das tardes ,longe do bulício ,e ,esquecida da perfídia e da mediania dos meios ,ditos ,citadinos
é ,então ,que volto a ser criança citadina .dois tempos poéticos .princípio e fim .fim e princípio de um ciclo de vida que se desenvolve em ascese a partir de um objectivo que se vai identificando ,em sublimação (in)completa
a génese está aqui!
junto a mim ,recolhido no fresco de um alpendre ,esquecido algures ,senta-se o Senhor Inácio Lima ,90 anos .imagino-o falando ,de quando em vez ,co9m um cão .tão velho quanto ele .”Leão” de seu nome .entre ambos ,um olhar cúmplice, ora gaiato ,ora arguto .faz-me recordar que o meu lugar, apesar de não ser aquele ,poderia e deveria sê-lo .aliás ,tinha gostado que fosse .porque
é urgente e necessário re.aprender a VERDADE daquele velho a quem a vida converteu em sabedoria .sem glória .sem palco .mas que fala .com letra grande .conta dias ,aventuras ,estórias da sua/nossa História .nunca se expõe .é um escrevinhador do tempo .do meu/nosso tempo de brincar .poeta em solidão .parece-me que brinca com as palavras enquanto (re)acende a mortalha de um cigarro .”a menina – sou eu – sabe que estes montes que a vista abrange ,outrora foram terra de mouros? havia de ver…”
deixei de o ouvir

( a súbita ,violenta e agreste dádiva de se entregar sem nada pedir em troca .apenas uma fala .todavia ,nada mais enganador do que esta aparente felicidade .a minha história não é assim )

então ,e ,sem ousar interromper o frasear do Senhor Inácio ,quase me apetece gritar-lhe: - por toda esta beleza consentida ,ensine-me ,meu Amigo ,a que a Vida não me torne amarga
um último sorriso troca-se
por momentos ,apenas o eco da consonância suspensa .o pensamento ,esse ,reorganiza-se na evidência de um valor transposto em autenticidade e liberdade
reinvento a Poesia .recrio personagens que se cumprem ,em antecipação
os monólogos passam a diálogos e,
regresso ,por fim e enfim ,a onde nunca parti

( nunca viajei para escrever
viajo em verdade
,apenas
,para me/vos conhecer )


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*Mário Máximo


Gabriela Rocha Martins
,Junho de 2016






epígrafe








…“cronicando ao sabor de um livro aberto”…





















.3

























…“textos mui bem datados – anos de 2016 e

 17 - e correspondentes à minha colaboração

nas Revistas TriploV e InComunidades
”…


























concerto para violino nº 1 ,op 29 ,de Ernst Krenek







o dia começa e mantém-se cinzento      faz frio e     o nevoeiro de fim de tarde caí tornando irreais os corpos e os seus contornos
acabo de arrumar o carro e      ao desligá-lo      armazeno um saber feito de insapiências
sento-me frente ao computador      de costas viradas para a porta      na moldura da janela
     depois da varanda     restam duas árvores      uma impõe-se pela sua despida presença      os ramos secos erguem-se às nuvens      a outra      aprumada      verde      grita a sua vontade de viver

... ...

este o cinzento aberto ao imaginário

... ...

o homem pássaro      o novelo agita-se      o braço e a asa deslocam-se do novelo      a música aumenta o bater da asa      no extremo      a mão projecta-se no ar      onde dançam os dedos ou as penas prontas a cair e a enroscar-se no novelo      destaca-se a cabeça      o queixo e o bico cortam o ar      o olhar fixa-se na presa

... ...

recomeça o desenrolar e o desenroscar do corpo

... ...

uma perna      uma asa      um braço      exibem frémitos de vida e força no auge dos compassos          concerto para violino nº 1 ,op. 29 de Ernst Krenek
eis-me pronta a desafiá-lo      como afronta à sua dimensão      de homem pássaro      exibo o meu corpo nu e      danço      solta      no limite do aloucar concertante