V- ser ou não ser ,eis a questão!







aproveitei o meu período de férias ,entre outras coisas ,para colocar em dia as minhas leituras .li novos livros ,mas ,sobretudo ,reli alguns ,cuja presença me é necessária quase como o comer
.é o caso de Hamlet
.porquê ,Hamlet? quem é ,de facto ,Hamlet?
”Quem tem a sorte de nascer personagem viva, pode troçar da própria morte, porque não morre nunca! Pode morrer o homem, o escritor, o instrumento de criação, mas a sua criatura, essa nunca morre! E para viver eternamente nem sequer precisa de ter dotes invulgares ou de obter prodígios. Quem era Sancho Pança? Quem era D. Quixote? E, no entanto, estão vivos para sempre porque tiveram a sorte de encontrar uma fantasia que os soube criar, insuflar-lhes vida para toda a eternidade!” – escreveu Luís Francisco Rebello
.é assim que o personagem de Hamlet sobrevive ao seu próprio criador ,que ao certo não sabemos se era William Shakespeare ,filho de um magistrado municipal ,cujo baptismo foi registado na igreja paroquial de Stratford ,com a data de 26 de Abril de 1564 ,ou se outro que escreveu ,sob o mesmo nome ,uma trintena de comédias ,tragédias e tragicomédias que ,para uns ,”são um dos mais altos vértices do génio humano ,e ,para outros ,o produto monstruoso de um bárbaro”
.quem quer que tenha sido o criador de Hamlet ,do que não restam dúvidas é que o príncipe transpôs ,sem envelhecer ,quinhentos séculos
.mas ,Hamlet não é o único a ser eterno
.com ele ,são.no Antígona e Electra; Inês Pereira ,D. Quixote e D. Juan; Hedda Gabler ,o tio Vânia ,Bernarda Alba ,a Mãe Coragem e quantas e quantos ,cujos nomes se nos tornaram familiares ,assim como os rostos ,os actos ,os gestos ,e ,as palavras que dizem…
com Hamlet ,porém ,as coisas não se passam ,exactamente ,da mesma maneira .conhecemo.lo tal como os outros ,julgamos conhecê.lo ,mas ,no entanto ,cada vez que o encontramos ,ele surpreende.nos ,porque nos surge sempre diferente ,ainda que as suas palavras e os seus gestos sejam os mesmos .porque Hamlet não é uma máscara aplicada num rosto ,mas um rosto que a cada instante muda de máscara .é um espelho onde um rosto se multiplica em infinitas imagens ,onde se reflectem as suas diferentes máscaras .e aí ,quer queiramos quer não ,Hamlet é o espelho de cada um de nós…
todos nos julgamos apenas um ,quando ,afinal ,somos tantos quantas as nossas máscaras .e Hamlet é a ilustração exemplar deste drama .drama porque o próprio espírito do príncipe não se vê uno ,mas dividido e contraditório .dividido entre o pensamento e a acção .entre a dúvida e a certeza .entre o amor e o ódio .entre o bem e o mal .entre a razão e a loucura .entre o ser e o não ser – e ,no entanto ,sempre ele
.da sua personalidade se tem dito que é ambígua ,incoerente ,indefinida ,enigmática .com efeito ,ao longo das várias cenas da tragédia ,Hamlet mostra.se crédulo e céptico ,generoso e cruel ,audaz e tímido ,calmo e impetuoso ,cortesão e grosseiro ,ingénuo e cínico ,justiceiro e vingativo ,voluntarioso e “adormecido”
.e é ,por tudo isto ,que Hamlet se nos apresenta ,inesgotavelmente ,rico e humano
.na 2ª Cena do 2º Acto ,Shakespeare precisa que Hamlet deverá entrar em cena a ler .então ,que livro lerá o príncipe? é difícil responder ,porque qualquer obra serve e variará conforme o sabor dos tempos
.assim ,teremos um príncipe da Renascença ou um herói romântico ,um racionalista ou um sonhador ,um místico ou um revolucionário ,um jovem torturado pelo complexo de Édipo ,um intelectual neurótico ,um antigo estudante que leu António Nobre sentado a uma mesa da Brasileira ,ou que esteve nas barricadas de Maio de 68 .todos estes Hamlets cabem no Hamlet de Shakespeare ,e ,por isso podemos dizer que ele é todo o mundo e ninguém
.quem é ,de facto ,este Hamlet ,ou esta tragédia que há cinco séculos se representa em todos os teatros do mundo e que constitui ,para um actor ,a mais exigente e conclusiva prova de exame? um drama filosófico ,um drama político ,um drama existencial ,um drama metafísico sobre a condição humana ,um drama absurdo ,um psicodrama? – basta lembrar a cena da representação destinada a servir de armadilha ao rei e os conselhos dados por Hamlet aos actores que para esse fim contratou – e ,com certeza ,não ficam esgotadas todas as hipóteses
.Hamlet ,quando a máquina infernal do destino se põe em movimento e a tragédia se aproxima do fim ,duvida de si próprio ,vê-se como os outros o vêem ,deixa de ser ele para ser ,aos seus olhos ,ninguém .se o consideram louco é porque é louco ,mesmo que finja não sê-lo .a loucura pode ser uma das muitas máscaras aplicadas no seu rosto ,mas para os outros ,a partir de então ,ele é ,verdadeiramente, louco
.não é por mero acaso que Shakespeare o põe a falar de si próprio na 3ª pessoa ,como se ele não fosse ele ,mas o outro que os outros vêem nele
.morre levando consigo o segredo da sua enigmática personalidade
.loucura verdadeira ou loucura simulada?
eis a questão: ser ou não ser!
”Eu sou para os outros aquilo que me julgam ser, e para mim não sou ninguém. O resto é silêncio” – são as derradeiras palavras do príncipe no momento de agonia
.sábias palavras estas .palavras que ,talvez ,só um louco pudesse pronunciar…




Dezembro ,2016
Gabriela Rocha Martins