I - nunca viajei para escrever







 [ viajo sem um segundo sentido
viajo para conhecer(-me) ]


alguns dias atrás ,mais concretamente ,no princípio do presente mês ,tive a oportunidade de passar algumas tardes no Sítio da Pateira ,freguesia de São Marcos da Serra ,concelho de Silves

( um sorriso cúmplice na vertente do Verbo .o simulacro de um sorriso ou a génese de uma conversa .a definição e a metáfora .SOLITÁRIO ,porque “ser em solidão é ser o máximo no Ser” )

durante longas tardes – que a mim me pareciam cada vez mais curtas – ,conversámos ou ouvi ,deliciada ,a imensa sabedoria das nossas gentes serranas .com elas aprendo que ,a percepção estética ,o processo criativo ,não está no olhar mas sim no ver .a essência .a busca intimista e indisível .o meu/nosso imaginário poético .ensinam-me a entender o canto dos pássaros e o murmúrio da terra-mãe .o silêncio carregado de mil significados das nossas serras .o gargalhar ,traquino e gotejado ,dos riachos e das regueiras das hortas vizinhas .o mourejar dos homens .a natureza agreste

as palavras voltam a brincar sobre a minha mesa quadrada .influências e (con)fluências múltiplas .há rituais que me acompanham desde o grande parto
“AGRESTE?
Sim ,agreste .não será deste modo que todo o essencial se assume ou é sentido? Que mais agreste pode haver do amar ,desejar ,orar ,nascer e morrer?
De acordo com as mais recentes teorias cosmogónicas ,a origem de tudo – o grande Big-Bang – foi uma tremenda e humanamente impensável eclosão de energia e matéria
Que evento mais perfeitamente poético pode ter existido? Foi o grande parto
Sim ,o grande parto .O Escrever .E que dor global não deve ter sido?
Que global e agreste início!”*

capitulo .a evidência .rendo-me
são gerações e gerações de mulheres e homens ,lavradores ,agricultores ,camponeses que ,durante essas horas de doce monólogo/diálogo ,povoam o meu imaginário
é-me tão fácil sonhar ,embalada na calidez das tardes ,longe do bulício ,e ,esquecida da perfídia e da mediania dos meios ,ditos ,citadinos
é ,então ,que volto a ser criança citadina .dois tempos poéticos .princípio e fim .fim e princípio de um ciclo de vida que se desenvolve em ascese a partir de um objectivo que se vai identificando ,em sublimação (in)completa
a génese está aqui!
junto a mim ,recolhido no fresco de um alpendre ,esquecido algures ,senta-se o Senhor Inácio Lima ,90 anos .imagino-o falando ,de quando em vez ,co9m um cão .tão velho quanto ele .”Leão” de seu nome .entre ambos ,um olhar cúmplice, ora gaiato ,ora arguto .faz-me recordar que o meu lugar, apesar de não ser aquele ,poderia e deveria sê-lo .aliás ,tinha gostado que fosse .porque
é urgente e necessário re.aprender a VERDADE daquele velho a quem a vida converteu em sabedoria .sem glória .sem palco .mas que fala .com letra grande .conta dias ,aventuras ,estórias da sua/nossa História .nunca se expõe .é um escrevinhador do tempo .do meu/nosso tempo de brincar .poeta em solidão .parece-me que brinca com as palavras enquanto (re)acende a mortalha de um cigarro .”a menina – sou eu – sabe que estes montes que a vista abrange ,outrora foram terra de mouros? havia de ver…”
deixei de o ouvir

( a súbita ,violenta e agreste dádiva de se entregar sem nada pedir em troca .apenas uma fala .todavia ,nada mais enganador do que esta aparente felicidade .a minha história não é assim )

então ,e ,sem ousar interromper o frasear do Senhor Inácio ,quase me apetece gritar-lhe: - por toda esta beleza consentida ,ensine-me ,meu Amigo ,a que a Vida não me torne amarga
um último sorriso troca-se
por momentos ,apenas o eco da consonância suspensa .o pensamento ,esse ,reorganiza-se na evidência de um valor transposto em autenticidade e liberdade
reinvento a Poesia .recrio personagens que se cumprem ,em antecipação
os monólogos passam a diálogos e,
regresso ,por fim e enfim ,a onde nunca parti

( nunca viajei para escrever
viajo em verdade
,apenas
,para me/vos conhecer )


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*Mário Máximo


Gabriela Rocha Martins
,Junho de 2016