há um signo no outro
lado da palavra
a chamada linguagem
sub-textual que João Maria não entende
essa ,aliás ,não é a
sua área
tenta concentrar-se
e deixar para depois do
exame a leitura do bilhete que a Inês lhe deixou no vidro do automóvel
resiste apenas dois
segundos
-preciso urgentemente
de falar contigo .encontramo-nos ,às seis ,na Gulbenkian
não .não faz sentido
lembra-se .o exame .o
mundo .o futuro .os amigos .todos os planos que ao longo de seis anos foi
arquitectando .o estágio em Florença .Duarte .Bernardo .o convite da ONU para
Timor .Gonçalo .Rosarinho .Filipa .a praia da Areia Branca .as noites quentes
.corpos em suave abraço .Maria/In
-preciso urg
talvez não
não pode ser .não faz
sentido
recorda-se da véspera
,quando ao sair da Faculdade ,encontrara Mariana e Inês segredando .apanhara no
ar "a amiga grávida .imagina .pai .melhor amigo"
Mariana entrou na sala
devagar .o olhar em volta .um sorriso parado a meio .Inês foi muito mais rápida
.despachada .como sempre .aliás .fora ela que colocara ,no vidro do carro do
João Maria ,a folha de papel dobrada em quatro
"melhor amigo
.imagina - a frase dói - pai"
não .não faz sentido
o bilhete escorrega
cai no chão
João Maria precisa de
concentrar-se
tudo depende deste
exame
Pedro ,despistado como
sempre ,entra na sala e "aterra" junto à secretária
senta-se
- "olá João .que
trombas ,pá!"
lê as folhas do exame
"parece que foi
feito de propósito cá p'ros ginjas"
continua sem perceber o
silêncio do amigo
"João ,a malta
safa-se .o exame é de caras ,meu!”
o mesmo silêncio
"bolas .hoje estás
apanhado de todo .não há pachorra ,meu!"
mergulha nas
perguntas/respostas .rói a esferográfica
a imagem de Mariana
sobrepõe-se .levanta os olhos e imagina-lhe o rosto meio encoberto pelo mar .os
cabelos colados à face .a frescura dos corpos .o amplexo no calor da areia
.Areia Branca .a noite
sacode os pensamentos
.xô .termina a prova
"precisas de
ajuda?"
de novo o silêncio
"népia .não tenho
estômago para "birrinhas de betinhos"
prepara-se para sair
.repara na folha dobrada em quatro ,caída no chão
agarra-a
-preciso urgentemente
de falar contigo .encontramo-nos ,às seis ,na Gulbenkian
lê
reconhece a letra de
Mariana
olha o relógio .dispara
Inês - "que horas
são? o teste não me correu mal e a ti?
acho que dá para safar”
- e
enquanto espera por
Mariana ,tem tempo para certificar-se de algumas respostas
Gonçalo ,Diogo
,Francisca e ela rodeiam a mesa da sôtora
discutem pormenores e
aguardam a saída .o toque .agudo vibrátil
Inês deixa o grupo e
junta-se à amiga .olha-a ,pela primeira vez ,com atenção
estranha
-“estás mal disposta?”
-“não .é do calor” -
responde Mariana
saem juntas
às seis horas ,em ponto
,chegam à Gulbenkian
"por aqui
,Pedro?"
"olá ,miúdas vocês
sabem o que se passa com o João Maria? tentei falar com o gajo ,mas nem bom dia
.está com um mau perder!"
Mariana olha em volta
Inês ,irónica como
sempre ,atira para cima da mesa mais uma das suas frases bombásticas
"ah ,não sabes?
bom ,também não admira num despistado como tu
o João Maria anda a
atravessar uma fase a que os psicólogos chamam de depressiva"
ri
"os pais
separaram-se e ,segundo dizem ,o pai..."
"poupa-me,
com a idade dele e
ainda com crises existenciais?
betices!"
o jogo subtil das palavras
acentua-se .o ardil
Inês inventa .Pedro
acrescenta
Mariana olha em volta
há um silêncio no outro
lado da palavra
não escrita
Mariana levanta-se
tudo faz sentido
aproxima-se da porta
.João Maria estende-lhe o beijo
a face
entre os dois não há
exames ,testes de Matemática ,frases bombásticas
João Maria pergunta
baixo
-“e o teste?”
-“positivo”