o Orlando







o Orlando era um rapazinho estranho .pertencia à turma dos reguilas
"foram todos escolhidos a dedo" - diziam-me alguns colegas
era o Orlando ,o Rui ,o Caixinha ,o Fernando .Irreverentes ,não submissos ,nos seus 15 anos .fartos de matérias repetidas em anos transactos ,tornadas monótonas pelo cansaço do nosso próprio cansaço .procuravam ,pelo afrontamento ,acordar-nos do tédio ,despertar-nos para a realidade do seu quotidiano .despir-nos das nossas certezas
eram a esperança metamorfoseada na adolescência
eram a vida
"senhora Professora ,o Orlando hoje está bêbado .foi almoçar na venda da esquina e obrigaram-no a beber uma porrada de vinho .é verdade ,Professora - dizia o Caixinha - começaram a dizer-lhe que não era homem ,não era nada ,se não aguentasse um copo de vinho .que o vinho dá força à gente .eu cá tive medo e não quis .o gajo chamou-me maricas .depois o Orlando sentiu-se mal disposto e fartou-se de vomitar .se a Professora visse o ar do homem
começou aos berros com a gente - se eu tivesse alguma culpa - a dizer que não queria javardos no restaurante dele .que até tinha uma filha professora"
a cabeça loira do Orlando acordava nos braços cruzados sobre a mesa .olhos brilhantes .uma bebedeira a que a estupidez dos homens tirara toda a irreverência e tornara submissos .aguardavam ,confusos ,a cumplicidade da sentença
uma falta ,a participação ,outro chumbo ,uma nova turma de repetentes reguilas ,porque "foram todos escolhidos a dedo" - lia-se na semi-inconsciência dos seus olhos brilhantes
no dia seguinte ,não apareceu na Escola .passou o trimestre
as matérias repetiam-se .a monotonia e o tédio vestiam a insapiência do meu saber .os dia voltavam a ser iguais no cansaço do meu cansaço
começava o mês de Fevereiro .um sorriso loiro escondia duas rosas queimadas pelo orvalho da manhã .era o Orlando
"amanhã vou para Lisboa e depois para Inglaterra .a minha mãe ,que trabalha num hotel ,escreveu a dizer que me arranjava trabalho .o meu irmão também lá está .foi por isso que eu deixei a Escola .andei com os pedreiros"
"não tens pena de deixar a tua Avó ,os teus amigos?"
"a minha Avó? essa nunca me ligou nenhuma e amigos há muitos .mas não queria abalar sem me despedir da Professora e dar-lhe isto"
estendeu-mas ,sem jeito ,e partiu
"obrigada ,Orlando"
"obrigada ,não" .voltou-se ."obrigada ,sim ,pela falta que não me marcou naquele dia"
aquelas rosas murcharam .muitas outras se têm aberto .todavia ,a cabeça loura do Orlando adormece ,ainda hoje ,nos braços cruzados da minha memória