Judite tinha 14 anos
todas as manhãs
encontrava-a sentada no muro do Liceu como se guardasse a minha chegada
"Bom dia ,Sôtor"
olhos ansiosos e
grandes envolviam um sorriso espectador de todas as coisas
que segredos se
escondiam naqueles olhos negros
umas vezes
acompanhava-me até à sala dos Professores ,outras ,esperava-me junto à porta do
9º F .falava pouco ,mas ouvia-me ,como se as minhas palavras lhe trouxessem
,todo , o mundo que ia descobrindo para além dos limites da cidade
e todas as manhãs
encontrava-a sentada no muro do Liceu
era Janeiro
uma chuva miúda batia
nas janelas da sala enquanto os alunos desenvolviam a composição - "o que
é um professor?"
só a Judite ,parada
,com aqueles olhos grandes e negros ,dividia-se entre a janela e a folha .um sorriso
cúmplice bailava-lhe nos lábios
opacidades
sentia-me irritado com
o cinzento do céu, o constante gotejar da chuva ,o adormecer precoce dos dias
de Inverno a que o embaciado da nossa respiração deixava ,nas janelas ,a
saudade do sol ,dos dias quentes do Verão ,das cores e ,sobretudo ,de mim
"não achas que já devias ter começado a
composição? faltam vinte minutos para tocar" - creio que lhe gritei
sobressaltou-se
os seus olhos grandes e
negros pediram-me para sair
"mas porquê ,se ainda nem começaste a composição?"
silêncio
eu ,que durante meses
,lhes levara ,nas minhas palavras ,as cidades e o mundo ,destruíra ,num só
momento ,o sonho de uma miúda ,a sua capacidade de criar ,de vestir-se de vento
e de chuva
sobre a minha
secretária ,uma folha em branco
na minha frente ,uma
carteira vazia
sem dúvida ,a melhor
resposta à minha pergunta