5ª sinfonia de Malher







recebeu o troco
e    levantou-se lentamente     tão lentamente quanto lhe era possível a fim de retardar o seu regresso ao calor da rua
não é que lá fora estivesse melhor     antes a inércia de mudar de posição e a incerteza do tempo de espera
   acendeu um cigarro     começou a descer a rua     enquanto as pessoas à sua volta     obrigavam-no a pequenos desvios     ávidas da rotina do dia a dia
   não tinha     porém     importância porque ele descia expectante     e só por isso achava graça     a essa fúria formigal que levava os outros a chocarem consigo     cheios dessa importância de correr para o tédio que sabia domesticamente enfadonho
  a praça estava cheia   parou em frente aos isqueiros - os mesmos de sempre que há anos     se mantinham na mesma montra -  olhou os títulos dos jornais    verificou que na esquina da loja de modas ainda lá estava a camisa que gostaria de comprar     seguiu em frente     parando em cada montra cumprindo o ritual de ver o já visto     deleitando-se na confeitaria dos primeiros anos do séc XX - nos bolos e na montra - olhando as armas que nunca pensaria usar     vendo     de soslaio     o imobilismo de alguns comerciantes     virou à direita     e subiu     mais uma vez     a rua de desesperantes esperas e desesperas     das escadinhas     à esquerda saiu a miúda     hesitou em dar-lhe a importância do costume     mas o estado de alma permitiu-lhe um outro olhar     valeu a pena     as sandálias gastas     as pernas soberbas - bem feitas - mesmo bem feitas - aliás todo o corpo era bem feito     não necessitando da saia apertada nos sítios errados     ajustou o seu passo ao dela     e sorriu à mudança de ritmo de andamento     depois     passaram a trocar os olhares nas montras     e entre a brincadeira e no jogo     de acelera e trava     de montra-descarada-montra-impessoal     foi-lhe descortinando o rosto de menina que não teve tempo de brincar     as rugas que lhe haviam chegado        o peito que terminava num estômago apertado por um cinto
  pararam no largo     olharam-se     OLÁ-OLÁ     e aquele longo olhar contou todas as histórias     as contáveis e as outras     despediram-se como amigos
   o calor continuava     em todos os lados     mesmo estando à sombra e sendo 19h30
   começou a descida para casa
   é notável como a cidade pode oferecer o passeio conforme as necessidades
   se tivesse seguido a rua dos eléctricos     além de já ter chegado há muito tempo     não teria sido crítico de arte     nem teria pena da amiga que arranjara     pior     tinha-se impacientado com a espera
   subiu ao nono andar     a casa estava naturalmente fresca     e foi bom abrir as janelas para deixar entrar o sol e o rio
   luz     água     silêncio
   acendeu um cigarro e correu para o duche
   deixou a água correr    n ao longo do corpo     primeiro sem ordem    n depois em escolha metódica    curva a curva     dos pés à cabeça que inclinou em ângulo certo de modo a incidir no pescoço     no peito     no estômago     nas ancas     nos pés     de novo a repetição dos jogos de água e os sentidos que se apuram
   esqueceu a passagem do tempo     mas não a suficiente para precisar de um pouco de música    agarrou a toalha e serviu-se de wiskhy     estendeu a mão     tirou o 3º andamento     5ª sinfonia de Malher     e deixou-se ficar     quieto     oitava acima     garganta a baixo
   brincava com os dedos     e     com o copo    quando o telefone tocou
   o ciclo fechava-se     e ele viu     sentada a seu lado     a imagem que guardara o dia inteiro
   chegava de modo breve e seguro     com aquele sorriso nos olhos que dizia ser bom amar
   atendeu     naquele estender de mão     cingir de corpos - curiosamente     mesmo nos mais íntimos encontros     mesmo nesses     nunca haviam assumido qualquer compromisso - e no falar das generalidades diárias
   era bom ouvi-la
   mesmo quando não tinham coisas novas para dizer     ficavam a recordar os instantes de ontem só pelo prazer de estarem juntos
   era noite escura quando se despediram
   desligou o telefone      levantou-se      vestiu-se      comeu qualquer coisa e saiu
   Ana esperava-o     a rotina     o dia a dia     o tédio doméstico